quinta-feira, 1 de março de 2018

Considerações sobre o Contrato Social IV: Rousseau




Rousseau com sua hipótese filosófica sobre o homem natural desenvolvida no Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, aponta para o momento em que o homem, ao se tornar um ser social, começa a distinguir em si mesmo ser e parecer. Em outras palavras, o homem deixa de ser simples e único, conhecedor de si mesmo, para se tornar um desconhecido para si, desfragmentado e perdido entre desejos supérfluos e não necessários. Com o esquecimento de si, o homem passa a usar máscaras sociais inseridas em momentos diferentes da sua vida social e que ressaltam os males da desigualdade existente na sociedade. Atrela-se a isso a exaltação do amor-próprio entre os homens e de uma vaidade vazia que levará o homem a não mais olhar-se senão pelos olhos dos outros, tornando-se mais exterior do que interior. Faremos aqui uma breve analise da obra e sua relação com o Contrato Social.
Na sua obra sobre A Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens[1], Rousseau, com o intuito de estudar o homem em geral, desenvolve uma hipótese filosófica de um homem natural. Embora não admita a existência desse homem como um fato, ou seja, como um dado histórico, ele utiliza essa hipótese para poder estudar a natureza humana em sua plenitude e descobrir se a origem da desigualdade entre os homens presente na sociedade tem alguma justificativa direta na natureza. Tal homem natural estaria entregue ao estado de natureza e só poderia depender de suas próprias capacidades físicas e intelectuais. Ao contrário dos outros contratualistas anteriores a ele, Rousseau toma a sociedade como a principal origem da desigualdade e irá desenvolver um argumento que visa resgatar as verdadeiras paixões humanas, pois estas teriam sido substituídas por paixões sociais que só vieram ressaltar os males presentes no convívio em sociedade. Para Rousseau,

[...] os selvagens não são maus justamente por não saberem o que é serem bons, pois não é nem o desenvolvimento das luzes, nem o freio da lei, mas sim a calma das paixões e a ignorância dos vícios que os impedem de proceder mal[2].

Entendemos com isso que o homem não é inerentemente bom por natureza, porque o homem é ignorante de tudo aquilo que produz o mal como os vícios, por exemplo. No entanto, a bondade é natural e o estado de natureza é um estado imerso em bondade, o que faz com que o homem que vive nesse estado tire plenos benefícios disso. Dessa forma, o homem só poderá ser bom ou mal de acordo com a sociedade em que vive e o seu desenvolvimento moral, portanto, é fruto do meio em que vive. Com o advento das paixões sociais por oposição às paixões naturais, o homem aflorou o seu amor-próprio e, com isso, a sua vaidade, o que o fez tomar como critério de verdade o olhar do outro. Nisso se fez necessário, para o convívio em sociedade, a criação de máscaras sociais com as quais os homens passam a se relacionar hipocritamente uns com os outros. Noções de prestígio, hierarquia, classe e riqueza começam a denominar e diferenciar os homens que antes, por natureza, tinham a mesma condição e a mesma situação. Uma minoria passa a deter grande poder a partir dessas distinções e a dominar a maioria que inerte se subjuga a tais critérios.
Rousseau entende que todo processo de desigualdade humana se dá com o início da sociedade civil, através da instituição da propriedade privada. A natureza, ao contrário, seria o lugar para uma bondade natural existente na essência humana, que foi perdida quando o homem se tornou social. Para ele, o estado de natureza humano deve ser entendido como uma hipótese filosófica para falar da humanidade em geral e não somente de uma particularidade dos homens. Hobbes, segundo Rousseau, tomou as paixões sociais como sendo paixões naturais e por isso classificou o homem como egoísta, amante da glória e competindo por tudo. No entanto, no estado de natureza o homem é dotado de uma piedade natural que tempera o ardor que ele tem por seu bem-estar com uma repugnância inata em ver sofrer seu semelhante[3]. O estado de natureza do homem é o que melhor guarda as suas paixões e liberdade originários, apesar de que não há como a ele retornarmos. Por isso, Rousseau irá idealizar uma maneira pela qual possamos resgatar valores de nossa natureza perdida e colocá-los em prática na sociedade. O propósito de Rousseau é combater os abusos e não repudiar os mais altos valores humanos. Nisso terá importância a sua obra mais conhecida: o Contrato Social. Em primeiro lugar, ele visa um modo de vivermos em sociedade sem perdermos com isso a nossa liberdade, pois para ele “renunciar à própria liberdade é o mesmo que renunciar à qualidade de homem, aos direitos da humanidade, inclusive aos seus deveres”[4]. A liberdade é, portanto, inalienável. Mas como é possível manter-se a liberdade ao mesmo tempo em que se cria uma sociedade?
De acordo com Rousseau, o soberano, seja ele uma assembleia ou um monarca, é uma pessoa moral cuja vontade será desde então a vontade de todo o corpo político, logo, a vontade de todos os seus membros. Essa vontade de todos os homens envolvidos no corpo político será chamada de vontade geral. A soberania é o exercício da vontade e tem três principais características:
(i) ela é inalienável – a soberania deve sempre residir no povo e que este não pode confiar seu exercício aos governantes, quaisquer que eles sejam.
(ii) ela é imprescritível – só pode ser exercida no corpo da nação e não pode de modo algum ser exercida por um indivíduo.
(iii) ela é indivisível – a vontade não pode ser particular, mas de todo o povo e, somente assim, uma vontade geral.
Essas três características se complementam na formação de uma soberania que responde por todo o povo. A passagem do estado natural ao estado civil produziu no homem uma mudança considerável, substituindo em sua conduta o instinto pela justiça e imprimindo às suas ações a moralidade que anteriormente lhes faltava[5]. Dessa forma, Rousseau não poderia rejeitar a ideia de lei natural sem que, com o mesmo golpe, privasse o contrato social de toda sanção moral, de maneira que, o contato social se justifica na lei natural. As leis civis constituem atos da vontade geral, instituídas por todo o povo para governar todo o povo e sendo, dessa forma, o povo legislado por si próprio. A liberdade moral é a única que torna o homem senhor de si mesmo, posto que o impulso apenas do apetite constitui escravidão, e a obediência à lei a si mesmo prescrita é a liberdade[6]. Os maiores bens que devem se encontrados em todo sistema de legislação são a liberdade e a igualdade[7], pois será a partir dessa estreita relação entre liberdade e igualdade que Rousseau construirá a sua justiça, uma vez que a liberdade entre os homens só pode ser mantida se não houver alguém desigual, de modo que a desigualdade provoca a injustiça entre os homens. No seio da sociedade, a igualdade, que é a condição de liberdade para todos, só pode ser realizada se der ao soberano uma autoridade absoluta sobre todos os membros da associação. Se sobrassem aos particulares alguns direitos dos quais pudessem usufruir sem a permissão do soberano, a vontade geral deveria inclinar-se diante das vontades particulares ou, ao menos, medir-se com elas e, dessa forma, deixaria de lhes ser superior e de lhes impor sua lei.
Um dos pontos que podem justificar a mudança do homem e a sua saída do estado de natureza é a questão da liberdade exposta na primeira parte do Discurso da Desigualdade. O homem, ao contrário, dos outros animais não age por instinto, mas por ato de liberdade[8].

Assim é que os homens dissolutos se entregam a excessos que lhes causam a febre e a morte, porque o espírito deprava os sentidos e a vontade ainda fala quando a natureza se cala[9].

E,

[...] o estado de reflexão é um estado contrário à natureza e que o homem que medita é um animal depravado[10].

As luzes e a reflexão (o uso da razão) são outro motivo de mudança no homem. A passagem da natureza para a sociedade se dá desta forma, conforme indicamos abaixo,

Seria triste para nós sermos forçados a convir que essa faculdade distintiva, e quase ilimitada, é a fonte de todas as infelicidades do homem; que é ela que o tira, por força do tempo, dessa condição originária em que ele passaria dias tranquilos e inocentes; que é ela que fazendo desabrochar com os séculos suas luzes e seus erros, seus vícios e suas virtudes, torna-o com o tempo o tirano de si mesmo e da natureza[11].

O homem é o animal que se utiliza da razão e o uso desta levou ao desabrochar da sociedade. A razão aos poucos aumentou a diferença existente entre o homem e os outros animais, levando ao reconhecimento de si e ao orgulho[12], o que em muito contribuiu para uma mudança no seu pensamento e no seu agir. A tirania, de que nos fala Rousseau, é a soberba do indivíduo que não mais olha os outros homens como iguais, mas se coloca como superior a todos os outros, querendo para si toda a glória, cargos e bens que o possam consagrar acima dos demais. A natureza também deixa de fazer parte de seu ser e uma ruptura sem retorno se faz entre homem e natureza. A natureza passa a pertencer aos interesses do homem, que usa e abusa dela conforme lhe condiz. Esquecendo-se da sua origem, se torna um desconhecido para si mesmo; e como um desconhecido, o homem passa a vagar fragmentado pelo mundo que o rodeia. Os caminhos se tornam múltiplos na busca de sua essência perdida, o que faz com que o homem caia nas futilidades sociais e na vaidade humana. As máscaras sociais nada mais são do que a perda de uma identidade comum de um conhecimento de si. Para o homem social “ser e parecer tornaram-se duas coisas totalmente diferentes, e dessa distinção provieram o fausto e imponente, a astúcia enganadora e todos os vícios que lhe formam o cortejo”[13].
O homem social é um mascarado constante. Se houvesse apenas uma máscara, seria fácil distingui-lo na sua aparência. No entanto, a dificuldade em encontrar quem, de fato, é o homem se deve ao uso pelo mesmo de várias máscaras. Cada uma para uma situação social diferente. Assim o homem é um entre os amigos, outro no trabalho, diferente com os pais, piedoso na igreja, amoroso com o cônjuge, etc. A fragmentação é tamanha que se torna impossível um reconhecimento de si, ao ponto de conhecidos próximos falarem da mesma pessoa de maneira totalmente diferentes. A máscara é o símbolo da hipocrisia humana nas relações sociais. O marquês de Sade parece apontar em sua Filosofia na Alcova que toda relação de poder tem ocultas a violência e sexualidade, portanto, uma ruptura com o contrato social teria a função de desmascarar a hipocrisia humana e revelar a sua verdadeira e crua natureza.
Mas para Rousseau, a sociedade ocultou no homem o que ele tinha de melhor: a sua própria essência. Sua unidade foi perdida, suas paixões verdadeiras trocadas por ilusórias paixões sociais: vaidade, orgulho, desprezo, amor-próprio. Olhamos o outro com indiferença, falamos do outro para falarmos de nós mesmos, sem com isso nos reconhecer, sequer conhecermos em nós o que realmente somos.

Tal é, de fato, a verdadeira causa de todas essas diferenças: o selvagem vive em si mesmo; o homem sociável, sempre fora de si, só sabe viver na opinião dos outros e é, por assim dizer, do juízo deles que lhe vem o sentimento de sua própria existência. [...] Sempre perguntando aos outros o que somos e nunca ousando interrogar-nos a nós mesmos sobre isso, em meio a tanta filosofia, humanidade, polidez e máximas sublimes, só temos um exterior enganador e frívolo, honra sem virtude, razão sem sabedoria e prazer sem felicidade. Basta-me haver provado que não é esse o estado original do homem, e que somente o espírito da sociedade e a desigualdade que ela engendra é que mudam e alteram assim todas as nossas inclinações naturais[14].

*
Tanto em Rousseau quanto em Hobbes, o contrato social é obra da razão. Em Hobbes o contrato permite que os males do estado de guerra instaurado pelo estado de natureza seja instinto através da formação de um poder comum que cause a todos um temor que leve a obediência e a paz promovendo, dessa maneira, a saúde e a segurança do corpo político. Em Rousseau, o contrato só foi possível porque a sociabilidade tem como efeito tornar a razão ativa e fornecer assim o remédio para o mal pelo qual a própria sociedade é responsável. Dessa maneira, o contrato em Rousseau instaura uma vontade geral que irá legislar sobre todos os cidadãos as leis que eles fizeram para si.
Para Rousseau, é preciso reformular o contrato social que regula a desigualdade entre os homens, permitindo que a liberdade e a igualdade, que são essenciais ao homem, sejam restauradas na sociedade. O estabelecimento de uma vontade geral do povo evita a tentativa de dominação do homem sobre o homem, assim como a elevação de vontades particulares contra o estabelecimento harmônico da própria sociedade.


BIBLIOGRAFIA

HOBBES, T. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo Martins Fontes, 2008.

________. Os Elementos da Lei Natural e Política. Tradução de Bruno Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

ROUSSEAU, J.-J. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

________. ROUSSEAU, J.-J. O Contrato Social. Tradução de Rolando Roque da Silva. São Paulo: Editora Cultrix, 2002.

SADE, Marquês de. Filosofia na Alcova. Brasília: Coordenada, [19--]




[1] ROUSSEAU, J.-J. A Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Demais citações à obra serão abreviadas por Discurso da Desigualdade. Todos os grifos são meus.
[2] Discurso da Desigualdade, p. 189.
[3] Discurso da Desigualdade, p. 189.
[4] ROUSSEAU, J.-J. O Contrato Social. São Paulo: Editora Cultrix, 2002, I.4. Citações à obra serão abreviadas por Contrato seguidas do livro e do parágrafo referentes.
[5] Contrato, I.8.
[6] Contrato, I.8.
[7] Contrato, II.11.
[8] Discurso da Desigualdade, p. 172.
[9] Discurso da Desigualdade, p. 173.
[10] Discurso da Desigualdade, p. 169.
[11] Discurso da Desigualdade, p. 174.
[12] Discurso da Desigualdade, p. 205.
[13] Discurso da Desigualdade, p. 217.
[14] Discurso da Desigualdade, p. 242-243.