terça-feira, 6 de novembro de 2012

Os 50 anos de A Estrutura das Revoluções Científicas


Em 1962 publicou-se o livro mais influente e citado da história da filosofia da ciência: A estrutura das revoluções científicas, de Thomas Kuhn (1922-1996). Sua tese mais importante é que o desenvolvimento da ciência não é linear e cumulativo, como sugerem boa parte dos manuais acadêmicos e escolares. A ciência de hoje não é mera extensão e sofisticação da ciência de outrora, mas produto de alterações radicais nas linguagens, métodos e problemas das disciplinas científicas. É um equívoco achar que hoje temos melhores soluções para os mesmos problemas de que se ocupavam os cientistas do passado. Pesquisa-se hoje, por exemplo, se no centro de todas as galáxias há um buraco negro. Como os conceitos de ‘galáxia’ e ‘buraco negro’ inexistiam na astronomia antiga, as hipóteses atuais sequer podiam ter sido formuladas na ciência do passado. Se é certo que hoje temos predições mais precisas sobre um número maior de fenômenos naturais, disso não se segue que esses avanços nas capacidades preditivas tenham sido conquistados por mera extensão e ampliação da ciência de antigamente. A história da ciência contém rupturas, que Kuhn chamou de “revoluções”.


História da ciência

Ainda jovem, Kuhn foi convidado a ministrar um curso sobre a física de Aristóteles. Para sua surpresa, contudo, não apenas não conseguia compreender bem o texto de Aristóteles, como tampouco conseguia dar sentido ao seu modo de pensar: alguns exemplos e ilustrações apresentados como evidências de teses centrais pareciam-lhe irrelevantes, algumas classificações pareciam-lhe arbitrárias e injustificadas. Essas dificuldades não se deviam a problemas de tradução do grego antigo, mas à própria estrutura interna das teorias, que parecia não fazer sentido. Esse estranhamento inspirou Kuhn a empreender uma investigação mais sistemática da história da ciência, que resultou, alguns anos mais tarde, no livro A revolução copernicana (1957).

Paradigmas

Em A estrutura das revoluções científicas, Kuhn sistematizou suas conclusões anteriores, formulando-as de modo instigante e inovador. A história da ciência, ele sustentou, está dividida em períodos de “ciência normal” e períodos de “crise e revolução”. Os primeiros são caracterizados pela vigência de “paradigmas”: modelos de teoria e prática científica que guiam as atividades científicas durante um certo tempo. Esse modelo contém elementos teóricos (algumas teses ou leis da natureza muito gerais e básicas), elementos metodológicos (um conjunto de instrumentos e práticas de pesquisa), e elementos sociais (um conjunto de compromissos pessoais e institucionais) que permitem que a atividade científica seja um empreendimento colaborativo e coordenado. Os paradigmas são adotados durante as revoluções, e posteriormente tornam-se pressupostos não questionados da prática científica normal. Eles induzem uma maneira de ver a realidade que é largamente compartilhada e não questionada. A atitude dos cientistas é nesse aspecto dogmática: para fazer parte de uma comunidade científica é preciso aceitar aqueles fundamentos, usar os métodos de pesquisa considerados aceitáveis pela comunidade etc.

Contra Popper

Ao apresentar esse elemento dogmático como constitutivo da prática científica normal, Kuhn contrapôs-se à concepção de ciência de Karl Popper. Segundo este último, um dos traços característicos da atividade científica seria uma atitude crítica constante: uma disposição de revisar qualquer tese ou pressuposto, se indícios contrários apresentarem-se. Kuhn nega que isso ocorra durante os períodos de ciência normal. Diferente de Popper, Kuhn afirma que essa disposição crítica é limitada, e só se estende aos fundamentos da ciência em períodos de crise e revolução.

Crise e revolução

Esses são períodos extraordinários em que o paradigma anterior não é mais capaz de produzir teorias capazes de resolver problemas julgados importantes pela comunidade científica. A persistência de fenômenos inexplicados, ou anomalias, produz então um crescente sentimento de desconfiança com relação a aspectos centrais do paradigma anterior. Isso então permite o surgimento de escolas de pensamento concorrentes, que propõem modelos alternativos de ciência. A resolução desses períodos de crise ocorre quando um desses grupos concorrentes consegue apresentar um modelo novo suficientemente eficaz, capaz de angariar a adesão dos demais membros da comunidade. Isso é o que Kuhn chama de revolução científica.

A impregnação teórica das observações

Como os paradigmas moldam os aspectos mais básicos da concepção que os cientistas têm da realidade, a própria percepção (a observação) é afetada. Cientistas que adotam paradigmas diferentes veem o mundo de modos diversos. Essa é a chamada tese da impregnação teórica das observações. Aquilo que o cientista observa depende de suas concepções prévias. Isso tem várias consequências interessantes para a ciência, como a chamada tese da incomensurabilidade: teorias produzidas em paradigmas distintos não são completamente intertraduzíveis, e por isso não têm como ser apresentadas em uma linguagem neutra. Qualquer apresentação de uma delas forçosamente adota um vocabulário que não faz sentido na linguagem da outra. Algumas noções centrais da física aristotélica ou newtoniana, por exemplo, não fazem sentido na física contemporânea, e vice-versa.

Critérios de decisão

Um dos aspectos do livro de Kuhn que mais impacto causou foi sua sugestão de que a ciência, tradicionalmente um modelo de racionalidade, recorre a elementos subjetivos e irracionais em períodos cruciais. Boa parte das críticas recebidas por Kuhn nas décadas de 1960 e 1970 tinham justamente esse ponto em vista. Alguns autores, em particular Lakatos e Laudan, procuraram conciliar elementos da análise historiográfica de Kuhn com critérios objetivos de decisão, mas não está claro se seus empreendimentos lograram êxito. Em escritos posteriores, Kuhn volta-se novamente para esse tema, e introduz a noção de valores científicos (precisão, simplicidade, coerência etc.) como guias objetivos na escolha de hipóteses rivais em períodos revolucionários. Mas, ao fazê-lo, ressalva que o conceito racionalidade e objetividade sugerido por suas análises históricas não é aquele postulado pela metafísica tradicional.

Um livro clássico

Ao longo desses últimos 50 anos, o livro de Kuhn tornou-se um clássico. Antes dele, as discussões em filosofia da ciência giravam primariamente em torno de temas conceituais abstratos (indução, explicação, verificação, refutação etc.); depois dele, a história da ciência passou a funcionar como guia e baliza da filosofia da ciência. Em razão disso, a imagem que temos hoje da ciência é menos ingênua e mais rica. Por essas e outras razões, o livro de Kuhn é hoje leitura obrigatória para todos aqueles que se dedicam à filosofia e à história da ciência.


Autores desta postagem: 
Rogério Passos Severo, Gilson Olegario da Silva, Laura Machado do Nascimento e Tamires Dal Magro (Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria)