segunda-feira, 18 de abril de 2011

A postura agnóstica de Clifford

Uma resposta para se é racional acreditar em algo sem indícios suficientes advém do pensamento de W. K. Clifford (1877). Ele pensa que não temos o direito de acreditar em algo sem indícios adequados, pois não há justificação para adotar uma crença sem indícios suficientes. E, ao acreditarmos sem indícios, prejudicamos o desenvolvimento social por enfraquecer o hábito de investigar e testar as nossas crenças. Isso prepara a sociedade para as pessoas serem rodeadas por mentiras; o que, em última instância, as levaria à selvageria. Assim, se não temos bons indícios para o teísmo e nem para o ateísmo, devemos ser agnósticos.

As regras de Clifford para reger a aceitação de crenças são: (I) se alguém sabe de indícios contra uma hipótese e não sabe de indícios a favor, então se ela aceita a hipótese, comete uma imoralidade; e (II) se não há indícios contra ou a favor da crença, é imoral aceitá-la ou rejeitá-la. Mais especificamente, Clifford pensa que o direito de acreditar em algo depende da maneira como adotamos a crença: podemos ser honestos ou desonestos, de acordo com se investigamos imparcialmente ou se silenciamos nossas dúvidas e evitamos a investigação (acreditando sem indícios suficientes). Uma pessoa que tenha convicção numa certa crença, mas que obteve tal convicção por meio de um processo epistêmico desonesto ou ilegítimo, não tem o direito de acreditar numa tal crença – por não ter indícios ou porque seus indícios são insuficientes. A convicção sincera sem indícios suficientes não isenta a pessoa da responsabilidade moral de suas ações baseadas nessa convicção. A responsabilidade é asserida porque a pessoa não tinha direito de acreditar na crença dado seus indícios serem insuficientes (ou dado ter tido uma atitude de investigação desonesta). Tal pessoa é considerada pelas outras como alguém de opinião não confiável e desonesta. Clifford pensa que fazer uma ação sem indícios suficientes é fazer uma ação errada, e ser responsável por ela, já que deliberadamente e voluntariamente a pessoa se colocou naquele estado de espírito. E estar certo ou errado em pensar ou em fazer algo tem a ver com o modo como adotamos uma crença, e não com a própria crença. Não é a crença que se considera errada, mas a ação que dela decorre.

A crença se relaciona com a ação no ponto de que se condena/aprova uma, se condena/aprova a outra. Clifford diz que uma crença está sempre ligada à ação. “Se ela não se realiza imediatamente em ações inequívocas, é reservada para orientação no futuro” (Murcho, 2009, p. 30); ela se torna parte de nosso conjunto de crenças (elo entre sensação e ação), confirmando ou enfraquecendo crenças desse conjunto, e podendo deixar marcas no nosso caráter. Uma crença forte para um dos lados numa disputa impede a investigação de ocorrer com a mesma imparcialidade que alguém neutro e duvidoso teria. E é por isso, pensa Clifford, que devemos investigar pacientemente e imparcialmente antes de acreditar.

Ele diz que a nossa linguagem, processos e modos de pensar são partilhados socialmente; o que faria com que as crenças de cada homem que partilha nossa língua influenciem a nossa linguagem, nossos processos e nossos modos de pensar. As crenças transmitidas podem ajudar ou prejudicar a manter a sociedade coesa. Portanto, diz Clifford, temos o dever perante a humanidade de nos precavermos de crenças desonestas. Isso é um dever porque a crença desonesta é como uma epidemia (ações incorretas têm consequências negativas) e porque é incorreto aceitar crenças desonestas independente de suas consequências. Tornar-se desonesto é um mal; por isso, tornar-se crédulo é um mal: vai se perdendo o hábito de testar e investigar as coisas; “o que reincidirá forçosamente na selvageria. O homem crédulo é o pai do mentiroso e do batoteiro” (Murcho, 2009, p. 32). Assim, seu pensamento é que “é sempre incorreto, em todo o lado, e para qualquer pessoa, acreditar seja no que for com base em indícios insuficientes” (idem, p. 33). E quem o faz comete um pecado contra a humanidade.

Clifford pensa que a dúvida numa investigação é uma prova de que ela não está completa. O que se costuma falar é que as pessoas não têm tempo de investigar antes de acreditar. Clifford pensa que se uma pessoa não tem tempo para investigar, então ela também não deveria ter tempo para acreditar. Mas deverão quase todos se tornar agnósticos quanto ao conhecimento científico pela falta de tempo para investigá-lo? Clifford responde que não, por ser legítimo em certos casos acreditarmos no testemunho de outro, e também por ser legítimo em certos casos acreditarmos em coisas que ultrapassam a experiência da humanidade. Ele pensa que quando não temos indícios suficientes, temos o dever de agir de acordo com a probabilidade, pois é através das consequências da ação que poderemos obter indícios que justifiquem a crença futura.

Mas quais são os casos em que podemos acreditar no testemunho de outro? Para acreditar no testemunho, diria Clifford, precisamos de: (1) justificação razoável para confiar na veracidade da afirmação; (2) o falante ter tido oportunidade de conhecer a verdade sobre a afirmação; (3) uso apropriado das oportunidades para concluir a afirmação. E para medir a credibilidade da testemunha, precisamos responder: (4) É a testemunha desonesta? (5) Pode a testemunha estar enganada?

Geralmente, as pessoas erroneamente aceitam a resposta negativa à 4 como sinal de que a testemunha fala a verdade. Um exemplo é pensar que Maomé sempre dizia a verdade porque era honesto. Clifford nos diz que sua honestidade é sinal de que diria a verdade na medida em que a soubesse, mas não que seja indício de que ele sabia alguma verdade. Como Maomé podia saber que o anjo não era alucinação? Ou que o anjo era realmente um anjo celeste? Como ele poderia saber que o que o anjo diz é verdade? Do fato de Maomé ter sido honesto e ter criado um grande sistema social e moral, “não nos é permitido concluir a partir daqui que ele foi inspirado a declarar a verdade acerca de coisas que não podemos verificar” (idem, p. 37) – como: se sua inspiração é divina ou se seu conhecimento de teologia é verdadeiro. Se ele falasse a verdade acerca de coisas que podemos verificar, então estaríamos autorizados a acreditar nele sobre tais tipos de coisas, e não outros tipos. Isso é o mesmo com relação a um químico: se ele estava em condições de conhecer algo, usou os métodos adequados e tem boas justificativas para uma certa afirmação química, podemos acreditar nele com relação aquela afirmação (e com relação também a outros tipos cobertos pelas mesmas condições), a menos que saibamos algo negativo com relação ao seu caráter ou discernimento. Mas isso não nos autoriza a acreditar nele no que diz respeito à organização político-social ou à teologia. A autoridade de um indivíduo é válida se for possível verificá-la sem deixar de ser humano e se for possível para o informante ter obtido aquela informação por meios confiáveis. Para Clifford, nenhum experimento científico poderá justificar a autoridade de um cientista com relação a uma afirmação que implica conhecimento exato ou universal.

Mas e sobre a autoridade da tradição: podemos duvidar da autoridade da tradição? Podemos testá-la? É correto duvidá-la e testá-la? A resposta de Clifford é dizer que duvidar e testar nossa tradição é possível, correto e nosso dever. Pois a tradição nos dá os meios para tal, e se não investigarmos bem as coisas, prejudicamos a nós próprios. Podemos ser persuadidos por uma fraude e manter uma crença através das gerações apenas por causa da credulidade. Não temos o direito de acreditar numa crença apenas porque todas as pessoas dizem; a falibilidade que cada uma delas está sujeita em separada, todas também estão sujeitas em conjunto. Isso só será um motivo para acreditar, se houver “boas razões para acreditar que pelo menos uma dessas pessoas tem os meios de conhecer a verdade, e que fala a verdade tanto quanto conhece” (idem, p. 40).

E isso também é válido para a tradição moral: o que a tradição nos passa no que diz respeito à moralidade, que adveio da experiência comum da humanidade, são as concepções morais, e não os códigos de conduta. Através de investigação, depuramos cada vez mais nossos conceitos (as concepções). Se não pudermos nos questionar sobre tais conceitos e sua aplicabilidade, teremos simplesmente um código de conduta. Acreditar na tradição acriticamente impede que consigamos inventar algo ou aprender algo melhor. “Quem faz um uso apropriado daquilo que foi acumulado e que nos foi transmitido é quem age da maneira que os criadores agiram, quando acumularam; os que o usam para fazer mais perguntas, para examinar, para investigar; que procuram com honestidade e seriedade descobrir qual a maneira correta de ver as coisas e de lidar com elas” (idem, p. 42).

As perguntas são importantes porque por meio das perguntas adequadas e do método adequado de solucionar/responder tais perguntas, obtemos facilmente a resposta. A herança da humanidade não consiste, então, de proposições que devemos aceitar com base na autoridade da tradição, mas consiste de perguntas bem formuladas, concepções que nos permitam fazer mais perguntas, e métodos de responder tais questões. O valor dessas coisas depende de elas serem cotidianamente testadas; por isso, temos o dever de testá-las.

Sobre o “ultrapassar da experiência empírica”: toda crença, se for encarada como um guia para a ação, já ultrapassa a experiência empírica. Se a memória for encarada como um relato fidedigno, já ultrapassa a experiência. A questão não é se podemos acreditar no que ultrapassa a experiência – pois é isso o que a crença é – mas “até que ponto e de que maneira podemos alargar nossa experiência ao formar as nossas crenças?” idem, p. 43). Clifford diz que podemos alargar nossa experiência pressupondo a regularidade da natureza. E se a pressupormos, e suas consequências mostrarem que a pressuposição se verifica, então teremos razões para (nos será lícito) acreditar na regularidade da natureza. E, contrariamente, não nos será lícito acreditar numa afirmação inconsistente com a regularidade da natureza. Se algo inconsistente com a regularidade ocorresse, esse algo teria duas propriedades: (1) nenhum indício daria o direito a alguém de acreditar nesse algo, a não ser que esse alguém tenha experimentado esse algo efetivamente; e (2) nenhuma inferência digna de crédito poderia se fundar nesse algo.

2 é verdade, pois para inferir qualquer coisa para além de nossa experiência, temos de postular a regularidade da natureza – ou seja, para fazer inferências para além de nossa experiência, temos de pressupor a regularidade da natureza, embora não tenhamos o direito de acreditar que a natureza é absoluta e universalmente uniforme. É a partir de as consequências desse pressuposto se verificarem na realidade que adquirimos o direito de acreditar nele. Se um fogo é completamente diferente do outro ou dele mesmo no tempo, como eu poderia pressupor qualquer coisa com relação ao fogo? E para além da regularidade da natureza, só podemos fazer hipóteses que servem para a colocação de mais perguntas.

Referências

Clifford, W. K. (1877) “A Ética da Crença”, in Murcho (2009).

Murcho, Desidério (org.) (2009). Fé, Epistemologia e Virtude: Ensaios de Filosofia da Religião. Trad. Vítor Guerreiro. Lisboa: Bizâncio, no prelo.