segunda-feira, 5 de julho de 2010

A Razão Pública Enfrentando o Tráfico de Pessoas

Um problema sério, de âmbito nacional e internacional, e que vem atingindo milhões de indivíduos é o tráfico de pessoas. Em 2000, preocupados com esse problema, muitos Estados Partes da ONU assinaram o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças. Este protocolo foi um marco, pois pela primeira vez o Tráfico de Pessoas foi definido com a abrangência necessária para que seja judicialmente reconhecido e perseguido.

Assim, no Brasil e no mundo ele é visto como

o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração. A exploração deverá incluir, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos. [Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças]

Segundo a OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa) , o tráfico de pessoas movimenta cerca de US$32 bilhões e 2,5 milhões de pessoas ao ano, gerando um lucro anual de US$10 bilhões a US$15 bilhões. Esta é a terceira fonte mais rentável para o crime organizado, logo depois do tráfico de armas e das drogas ilegais. 

Diversos estudos apontam que este crime é fruto da desigualdade social, da pobreza e da falta de perspectivas de ascensão social, aliados à vontade de uma vida mais promissora e a um aliciador. O modus operandi utilizado pelos traficantes consiste em aliciar pessoas, geralmente em condições de vida desfavoráveis, para trabalhar ou estudar em outra localidade, prometendo uma melhoria econômica ou social, que parece inviável à vítima em seu local de origem; e, ao chegar no local de destino, privá-la da liberdade e explorá-la. São muitos os tipos de exploração utilizados pelo crime organizado, mas os principais são: a exploração sexual, o trabalho forçado e o tráfico de órgãos.

As vítimas desses tipos de escravidões modernas costumeiramente decidem por vontade própria deixarem suas casas e se direcionarem aos lugares indicados pelos traficantes. Contudo, suas vontades estão influenciadas por suas condições de vida e pelas promessas do aliciador. Isso fez-nos perceber, nacionalmente e internacionalmente, que não deve importar a vontade da vítima para se configurar o tráfico de pessoas. Pois, afinal, é também por meio do convencimento dessas pessoas que o criminoso consegue transportá-las e mantê-las em situação de exploração sem que haja muitas fugas ou outros problemas. Outras maneiras de manter a situação de escravidão são: a violência psicológica, através do medo da deportação e da ameaça aos familiares, e a própria violência física.

O tráfico de pessoas é um crime que choca a consciência da humanidade e acaba com a dignidade da pessoa humana. Reagindo a esse choque, O Brasil, através do Decreto n. 5948, de 26 de outubro de 2006, “aprova a Política Nacional ao Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e institui Grupo de Trabalho Interministerial com o objetivo de elaborar proposta do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – PNETP” . Este Grupo, em 2008, lançou um resumo acessível do PNETP, indicando as prioridades e as ações pensadas para enfrentar o tráfico de pessoas em três eixos principais: prevenção, repressão/responsabilização e atenção às vítimas.

As ações contidas nessa publicação são de grande importância para o enfrentamento, mas creio que faltam alguns pontos para que possamos evitar o surgimento desse tipo de crime: conhecimento e incentivo. O objetivo deste artigo é suplementar o PNETP, mostrando como podemos investir no esclarecimento sobre o tráfico de pessoas e como podemos incentivar o crime organizado a remover tal “produto” de suas negociações.

Penso que as idéias aqui sugeridas são importantes, pois visam criar coisas que não foram abordadas (ou foram pouco abordadas) pelo Plano Nacional ou pelo Protocolo Adicional a Palermo (anteriormente citado): uma população esclarecida, tanto com relação ao tráfico de pessoas, quanto a vários outros problemas práticos, e a quebra do medo da vítima com relação ao traficante e ao sistema de imigração.

As condições para o tráfico de pessoas não são relativas somente à pobreza e à desigualdade, mas também do desconhecimento da futura situação de exploração e do desconhecimento de o quê se deve fazer ao passar por ela. O desconhecimento é uma arma poderosíssima usada por criminosos de todos os tipos pelo mundo todo: desde guardadores de carros e empresas de celular, até funcionários públicos e traficantes de pessoas. A informação é uma das principais armas dos cidadãos e dos governos para combater e prevenir muitos tipos de crimes.

O PNETP também utiliza a informação como recurso para enfrentar o tráfico de pessoas. Mas as ações pretendidas para tal fim (a conscientização) apenas promovem eventos singulares e específicos.

O problema que surge daí é que a discussão sobre o tráfico de pessoas, ocorrendo apenas em eventos pontuais, tende a ser esquecida ou trocada por outros debates instituídos no dia-a-dia pela mídia. O fluxo de informações apresentado pelos meios de comunicação é muito intenso, e isso afeta a memória da população. Para um debate permanecer, ele deve constantemente ser revisto, estando sempre “fresco” na mente da comunidade.

Penso que a solução para esse problema é tornar contínuo esse processo de conscientização. Portanto, além dos métodos convencionalmente utilizados (propaganda, arte, eventos e cartilhas), devemos usar um meio que normalmente é excluído de nossas campanhas informativas: a educação formal.

O processo educacional formal (fundamental, médio e superior) foca-se apenas no ensino das ciências. Talvez o motivo disso seja preservar a liberdade dos pais ensinarem seus filhos de acordo com os seus próprios princípios éticos. Entretanto, com o surgimento dos Direitos Humanos, pudemos verificar que os diversos povos (de diferentes culturas) concordam que certos direitos e princípios são universais, ou seja, que são aplicáveis a qualquer ser humano. Da mesma forma, é possível encontrar esse tipo de concordância dentro de um Estado.

Assim, não é necessário que nos foquemos apenas nas ciências; uma educação mais ampla é possível e desejável. E para fazer isso sem desrespeitar os indivíduos, teremos que adentrar no campo dos conhecimentos razoáveis. Estes são os conhecimentos que pessoas com princípios éticos e 'doutrinas de bem' diferentes podem aceitar. As ciências estão contidas neles, mas não são as únicas que podem ser consideradas razoáveis. Todo conhecimento que promova a cidadania e a manutenção da democracia é razoável; isso porque a cidadania e a democracia são elas mesmas razoáveis.

O conhecimento sobre direitos, deveres e crimes promove a cidadania e a democracia, pois informa o quê é necessário saber para que um indivíduo possa ser um cidadão, ou seja, para que um ser humano saiba que ações pode ou deve realizar na sua vida cotidiana dentro de uma organização administrativa pública. Aqui devem entrar as informações obtidas sobre: tráfico de pessoas, exploração sexual, delitos no funcionalismo público ou privado, e quaisquer outros conhecimentos que evitem que os cidadãos se tornem vítimas de qualquer tipo de crime. A importância disso é que o indivíduo saberá o quê deve fazer ou quem deve procurar frente a cada tipo de crime. E isso diminui a chance de vitimização e a chance da própria vítima se tornar um criminoso.

Além disso, o próprio estudante é um meio de disseminação de informações, tanto no seio familiar, como na sociedade em geral (trabalho, cursos, amigos etc). A informação sobre direitos, deveres ou crimes, dada em sala de aula, promove discussões e debates, fazendo com que a comunidade possa, além de se proteger, parar para pensar sobre seus problemas sociais e propor soluções para eles.

A sugestão é que utilizemos a transversalidade nas disciplinas, utilizando os direitos, deveres e crimes como objetos do estudo, e que façamos pelo menos uma matéria com a finalidade de ensinar como nos proteger desses crimes (tais como o tráfico de pessoas). Sem esse tipo de instrução não temos como exercer plenamente nossa cidadania, pois faltaria o conhecimento adequado. E ensinar isso dentro dos órgãos de instrução é um modo de aprofundar a discussão, estimular a pesquisa, disseminar a informação e promover a cidadania.

Suplementando esse conhecimento razoável, devemos ensinar uma ética razoável, ou seja, devemos ensinar certos princípios éticos que possam ser aceitos universalmente (como o são os Direitos Humanos) e que promovam a valorização da vida humana, tais como a tolerância e a denúncia de crimes..

REFERÊNCIAS

Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças

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